“Poder” – Por Joanna Macy

“Poder” – Por Joanna Macy

O texto abaixo foi publicado em inglês na revista Sage Woman, em 1988, ele é a transcrição de uma fala de Joanna Macy no Acampamento do Solstício de Verão da Women’s Alliance, em 1987. A tradução para português foi feita por Ormando M.N. e a revisão por Polliana Zocche.


Poder – é sobre isso que eu quero refletir com vocês nesta manhã. O poder que está em nós não é o que as pessoas “lá fora” chamam de poder. Não é o que a sociedade está nos dizendo que é o poder. As pessoas pensam que sabem como o poder se parece: grandes escritórios, suítes executivas, alto escalão, ar condicionado, bancos de secretárias, impressoras. Acham que são reuniões com alto escalão e limusines tão compridas quanto um quarteirão e fotos piscando e documentos ultrassecretos. A sociedade pensa que o poder são relatórios confidenciais e sigilo. Eles acham que o poder é uma grande fábrica que arrota fumaça e venenos, que dispara mísseis e foguetes – foguetes atravessando a Praça Vermelha e mísseis atravessando os campos de milho do Kansas. Mísseis cruzando sob o gelo ártico, prontos para aniquilar o mundo em um minuto – eles pensam que isso é poder.

Conforme nos aproximamos um pouco desse tipo de poder, começamos a ver que ninguém está no controle. Todo esse conceito de poder se baseia no controle, mas quem está no comando? Veja as audiências Irã-Contras – a melhor desculpa que eles puderam arranjar foi que ninguém sabia o que o que cada um estava fazendo. Oliver North deve ter sentido que era muito poderoso, sentado dentro do prédio do Escritório Executivo, mexendo os pauzinhos e fazendo planos secretos.

Pensamos que temos uma nação tão poderosa que podemos controlar os outros países, que podemos deixá-los endividados conosco. Pensamos que, em vez de deixar esses países cultivarem alimentos para eles mesmos, do jeito que eles fizeram durante gerações e séculos, nós podemos tirá-los de suas terras para cultivar commodities para nós. Por que vocês acham que a floresta tropical está desaparecendo na Amazônia? É porque os camponeses e trabalhadores foram expulsos de suas terras e estão indo desesperados para a floresta tropical, cortando e queimando para fazerem uma reivindicação. Nossas corporações também estão lá, cortando árvores para abrir pasto para o gado que vai virar nossos hambúrgueres. E nós pensamos que isso é poder. Nós flexionamos nossos músculos. Mas, a menos que isso pare de acontecer até o tempo limite de uma geração, simplesmente não teremos mais oxigênio para respirar. 

Pensamos que somos tão poderosos que podemos despejar nos países de Terceiro Mundo os pesticidas que descobrimos que são muito perigosos para nós mesmos. Deste modo, enviamos os venenos para os mesmos países em que nossos alimentos são cultivados. E o que bebemos no café da manhã? Café e suco, com esses mesmos pesticidas químicos vindo até nós novamente. Isso é o resultado do nosso carma!

Pensamos que somos tão poderosos que podemos simplesmente nos livrar do que não queremos, então despejamos 60.000 toneladas de rejeitos de plutônio nas Ilhas Farallone. E depois descobrimos que o surf ficou radioativo até a Baja Califórnia. Colocamos 3000 toneladas de lixo em uma embarcação para levar para algum outro lugar. Mas ninguém mais quer isso, e depois de 6 semanas no mar ela volta para casa em Nova Jersey. Pensamos que somos tão poderosos com nossas ogivas nucleares, que podemos ameaçar nossos inimigos com a incineração instantânea. E então descobrimos que são nossos próprios filhos que estão aterrorizados, que perderam a simples garantia de um futuro.  As taxas de abuso de drogas e suicídio entre adolescentes e até mesmo crianças nos mostram quem realmente estamos ameaçando quando usamos esse tipo de poder.

Então, quando chegamos perto dessa noção de poder, nos sentimos como a Dorothy enquanto ela entrava no salão do grande Mágico de Oz. Ela andou e puxou uma cortina, e havia um cara baixinho acionando alavancas e falando em um bocal. Ela descobriu que era uma ilusão. Esse tipo de poder é uma ilusão. A ilusão é que você pode existir de modo separado. A ilusão é que você pode controlar de cima para baixo. A ilusão é que você pode restringir a área do seu interesse apenas ao que você pode controlar, e banir para fora as coisas que você não quer lidar. A ilusão é que isso é um jogo de ganhar/perder: que alguns podem ganhar se outros perderem. A ilusão é que existe uma salvação privada. Que você pode cuidar de si mesmo sem cuidar dos outros. A ilusão é que você pode envenenar ou ameaçar ou matar os outros sem que isso devaste você mesmo.

É nosso destino maravilhoso estarmos vivas num momento em que esse tipo de poder ilusório está sendo desmascarado. Existe uma extraordinária revolução acontecendo na nossa compreensão do que o poder é. Penso que essa é a maior revolução cognitiva de nosso tempo. Precisamos entendê-la, porque algumas pessoas, vendo os abusos do antigo tipo de poder, concluíram que o poder em si é ruim; elas não querem ter nada a ver com poder. Mas isso é porque elas não entenderam o que o poder realmente é.

Então, o que é o poder real? Quem vai nos dizer o que é poder? Quem pode nos mostrar um poder que não tenta separar, que não tenta intimidar, que não tenta vencer, que não tenta controlar?

Isis, Astarte, Diana, Hécate, Deméter, Kali, Inanna…

E isso significa que aquela que pode nos dizer o que é o poder real também está em nós. Seus nomes são múltiplos. Vamos olhar os nomes que Ela veste e os poderes que Ela ensina…

O primeiro é o poder de ver. O poder de olhar para o que está acontecendo. Ora, isso requer muita coragem e determinação, porque nossa sociedade está equipada para nos impedir de ver o que está acontecendo. Ela nos cola nas distrações da televisão, nos fornece políticos que nos dizem que tudo está ok. O que vocês acham que elegeu Ronald Reagan? Sua garantia de que o Papaizão está lá e que as coisas não estão tão ruins quanto pensamos, que não precisamos olhar ou abrir nossos corações para o sofrimento e a devastação de nosso mundo, porque o Papaizão vai cuidar disso. Mas está ficando mais difícil fechar nossos olhos para o que está acontecendo, e assim os esforços para nos convencer de que as coisas estão bem se tornam mais desesperados. Indústrias inteiras são dedicadas a nos convencer de que estamos felizes, ou prestes a ficar felizes, basta comprarmos aquela pasta de dentes ou aquele desodorante para as axilas ou aquele político. Não é do interesse do Estado ou das empresas multinacionais, ou da mídia que serve a elas, que vejamos a devastação de nosso mundo e o sofrimento dos nossos irmãos e irmãs. Enormes recursos estão sendo dedicados ao entorpecimento da psique americana. Portanto, ver… simplesmente ver… é muito poderoso. E quando fazemos isso, quem está olhando?

Na tradição budista, ela é chamada de Tara. Ela vê tão bem – ela tem um olho na testa, ela tem um olho na palma de cada mão, e um olho em cada pé. Ela vê, ela vê… Em vez de sentar-se com as duas pernas dobradas para cima, na postura de lótus, uma perna já está para baixo: ela está pronta para agir, ela está pronta para se mover. Ser capaz de ver é subversivo, como o pequeno menino que viu o imperador passar com suas novas roupas. É muito subversivo, deixar as escamas caírem de seus olhos e olhar ao redor.

A seguir há o poder de ir para baixo, de descer. Ora, vários milhares de anos de patriarcado nos disseram que o que precisamos fazer é subir, subir a escada de Jacó, até as alturas Olímpicas, até os reinos da espiritualidade e da santidade. Acima do corpo, acima da natureza. Mas nós sabemos o que a cura requer. Não pode haver cura sem contato. Não pode haver cura até que se possa descer e tocar. Isso significa, às vezes, ir aonde você não quer ir. Para baixo, para o escuro, para as entranhas.

lnanna sabia disso. Ela amava tanto a vida – as primeiras tábuas sumérias cantavam sobre seu amor por Damuzi, seu consorte. Canções de tanto amor e apreciação pela vida, e mesmo assim ela sabia que tinha que ir para baixo. Ela nem mesmo tentou explicar isso. Com a sua coroa, o seu manto e o seu cetro, ela foi para baixo. Ela desceu sozinha – só se pode descer sozinha. Você pode saber que suas irmãs estão lá apoiando você, mas uma parte do assombro é que a forma da escuridão é diferente para cada uma de nós. Você precisa ir para baixo para recuperar isso. Inanna desceu, e a cada portão ela teve que abrir mão daquilo que lhe dava um sentido de si mesma e da sua segurança. Uma após outra, ela entregou sua coroa, seu manto, seu calçado real, até que por fim, totalmente nua, despida, ela enfrentou sua irmã sombria, Erishkegal. E sua irmã pegou seu corpo e o pendurou em um gancho.

Eu disse que tínhamos que fazer isso sozinhas – na verdade, isso não está correto. Inanna vai junto conosco.

(Rashani lidera o grupo na canção:)
Eu sou a filha da Mãe anciã,
Eu sou a criança da Mãe do Mundo.
Eu sou sua filha, ó Mãe anciã,
Eu sou sua criança, ó Mãe do Mundo.
Ó lnanna, Ó Inanna, Ó Inanna,
É você quem nos ensina,
A morrer, a renascer e a ascender,
Morrer, renascer e ascender.


Quando você desce, é lnanna que você está sendo. É a coragem dela em cada uma de nós, está ali para a recuperarmos e a usarmos…

Sudie Rakusin 1987 from Dreams and Shadows

As pessoas dizem: “Não fale comigo sobre a corrida armamentista ou sobre a chuva ácida – porque não há nada que eu possa fazer a respeito dessas coisas.” Aquelas de vocês que já fizeram qualquer organização, qualquer investigação ou telefonema sobre questões nucleares, ambientais ou de justiça social, conhecem esta resposta comum. “Ó, não penso nisso porque não há nada que eu possa fazer a respeito”. É muito interessante – a dupla auto-vitimização: Eu sou tão impotente, que não apenas não consigo agir, sou tão impotente que nem consigo pensar a respeito do assunto. “Não me peça para pensar sobre isso – não me peça para engolir isso, o que estamos fazendo com o nosso mundo. Se eu experimentasse isso, se eu me permitisse sentir isso, não conseguiria me levantar pela manhã: Olhe, eu tenho um trabalho que tenho que manter, tenho uma família para sustentar! Tenho que saber qual sapato colocar em qual pé quando me levanto pela manhã! Se eu realmente me deixasse levar pelo que está acontecendo com nosso mundo, eu desmoronaria. Eu poderia me desintegrar.”

E a deusa, em sua forma como Kali, diz: Não há problema em desmoronar. Nós a vemos em sua dança selvagem com os crânios ao redor de seu pescoço e seus caninos pingando sangue, uma dança selvagem de fúria e reciclagem de vida, uma dança selvagem de desmembramento. Porque, como os cientistas de sistemas nos dizem, todos os sistemas abertos precisam abandonar formas antigas para se reorganizarem. É assim que o poder funciona, através do desmembramento de formas velhas, para que elas possam se reintegrar em um nível superior. Kali sabe disso em sua dança, e a Deusa em nós diz, Não tenha medo de desmoronar. Este é o poder da desintegração positiva.

Com a noção de poder que temos tido em nossa cultura, as pessoas pensaram que para sermos poderosas, para sermos bem-sucedidas, precisamos ser donas de nós mesmas. Ser calma; equilibrada, contida, serena. Ah, mas a terra habita nossos corpos. Se estamos vivas, verdadeiramente vivas, neste tempo, nos ferve a partir de dentro uma fúria – e é a fúria de Deméter. É a raiva de Deméter quando ela viu que Perséfone, sua filha, o fruto de seu ventre e o ventre do futuro, tinha sido estuprada e raptada. E NÃO estava tudo bem com ela. Pro inferno com isso de “ser contida e serena e indiferente”! Deméter rasgou seus cabelos e berrou e ela andou com uma terrível fúria irracional através desta terra, gritando, chamando, chamando pela pessoa perdida, a filha perdida – Kore! Kore! Kore!

Não houve descanso e não houve paz até que ela a encontrou. E quando fez isso, Perséfone pôde vir até o mundo de cima todos os anos durante a primavera, para trazer fertilidade para o verão e colheita para o outono. E assim será para nós. Não haverá paz até que a fertilidade de nossa terra esteja novamente garantida, que ela possa continuar, que haverão outras gerações. Porque NÃO está tudo bem conosco que nossa terra seja estuprada e que nossos filhos sejam envenenados! E não haverá business-as-usual até que isso pare.

Há uma profunda sabedoria em nós que sabe que a antiga noção de poder era ilusória, precisamente porque ela foi construída com base em percepções erradas sobre a própria estrutura da realidade. Ela é construída sobre a noção de que a realidade é composta de entidades separadas e independentes. Entidades que você pode pesar e medir, que você pode comparar uma com as outras. A sabedoria mais profunda é a sabedoria da interconexão de todos os fenômenos, da própria teia da vida. Quando nos abrimos para esta sabedoria, quando vemos as relações elegantemente equilibradas e o fluxo dinâmico da própria realidade, quando colocamos os conceitos em palavras e ensinamentos para que possamos fundamentar nossas ações na compreensão, quem é? Sofia, Sabedoria, e ela está conosco e em nós neste momento…

Na tradição budista, surgindo ao mesmo tempo em que Sofia estava sendo reconhecida na bacia do Mediterrâneo, Ela adotou outro nome, Prajnaparamita, a Perfeição da Sabedoria. Ela surgiu na Ásia justamente na época em que certas escolas de monges budistas, de forma tipicamente patriarcal e reducionista, começaram a analisar a realidade até chegar aos minúsculos darmas – ou unidades empíricas separadas. Eles estavam ficando muito sistemáticos e escolásticos em relação a isso, e também hierárquicos, colocando o nirvana acima e além da realidade dos fenômenos, fora da teia da vida, de modo que o objetivo da prática espiritual se tornou a fuga da experiência material. Prajnaparamita, a Mãe de Todos os Budas – sim, é assim que ela é chamada nos textos, a Mãe de Todos os Budas – virou o jogo contra eles. Com uma forte palmada ela os lembrou, e a nós, que tudo, todos os darmas, são interdependentes, entrelaçados, vazios de uma auto-existência separada. Os textos que a celebram também introduziram uma nova visão sobre nós mesmos e um novo modelo de coragem e heroísmo: a(o) bodisatva. Eles nos dizem que todas podemos ser bodisatvas, comprometidas com a transformação inerente em toda a vida, “atravessando o espaço profundo da Prajnaparamita, a Perfeição da Sabedoria.”

Quando fazemos resistência a reatores nucleares ou Canais do Amor ou carregamentos de armas para os Contras, quando fazemos oposição aos pequenos tiranos, aos que desfilam no poder, podemos dizer não, não apenas com nossa própria fúria e autoridade, mas com a autoridade de quatro bilhões e meio de anos de vida em evolução no nosso planeta. Nós somos tão antigas assim, pois cada uma de nós remonta ao início dos tempos. Cada átomo em seu corpo esteve presente na primeira divisão e no giro das estrelas. E quando você sabe disso, você é Gaia. É Gaia, a Grande Deusa da Terra, que está sabendo disso através de você. Podemos falar com a autoridade dela. Podemos deixar o poder dela fluir através de nós.

Por que você acha que você nasceu neste tempo? Você acha que foi um infortúnio ter nascido em uma época com tanto sofrimento? Quando parece que nossa espécie está se preparando para incinerar a si mesma? Não. Você nasceu para dizer, junto com Gaia, “A vida  vai continuar”. Ela vai continuar através da sabedoria que te deu o seu corpo. Você pode confiar nisso.

Nesta longa história, quando olhamos para trás para nossa vasta jornada através do tempo, existem muitas mortes, mortes de formas antigas. Em nossa vida neste planeta, nós morremos muitas vezes. Por isso, conhecemos o poder de renunciar, de deixar ir o que não funciona mais. Deixar ir o que já não precisamos mais. Não precisamos ficar obcecadas com as crueldades do patriarcado. Isso está registrado – nós sabemos. Não precisamos ficar presas nisso – paralisadas pelos excessos deste sistema hierárquico, de ‘poder-sobre’. Está na hora de seguir em frente, irmãs. 

Porque a Deusa dentro de nós é uma Deusa da transformação. Ela transforma tudo que Ela toca, e tudo que Ela toca se transforma…

E ela está iminente em nós. Ela não nos abandonou. Os teólogos, quando eu fui para o seminário, estavam descobrindo que Deus está morto. Talvez o Papai Deus lá em cima esteja morto, mas a Deusa está viva, e Ela está em você e em mim. Tudo o que eu tenho dito, vocês já sabem, porque a Deusa está dizendo isso para a Deusa – a Deusa está relembrando. O poder da Deusa em nós também inclui o poder de reconhecer a Ela mesma…

Abra sua consciência aos poderes da coragem e da compaixão, aos poderes da sabedoria e da sagacidade, da paciência e da resistência, da engenhosidade e da criatividade, da raiva e do contentamento. O poder no poder um do outro, o poder que é ganha/ganha, o poder que é sinergia, o poder que é alegria na alegria do outro, o poder que é sem fim…

Isis, Astarte, Diana, Hécate, Deméter, Kali, Inanna, Sofia, Tara, Prajnaparamita… Há outro nome da Deusa. Diga seu próprio nome.

— Joanna Macy, 1987


O texto acima foi publicado em inglês na revista Sage Woman, em 1988, ele é a transcrição de uma fala de Joanna Macy no Acampamento do Solstício de Verão da Women’s Alliance, em 1987.. A tradução para português foi feita por Ormando M.N. e a revisão por Polliana Zocche em 2021.

Joanna Macy, PhD, é ativista ambiental, escritora, estudiosa do budismo, da Teoria Geral de Sistemas e uma das principais disseminadoras da Ecologia Profunda na atualidade. Saiba mais sobre ela clicando aqui.

pintura que de Tara Verde que está no começo dessa página foi feita por Mayumi Oda.

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