Entrando no Bardo

“Entrando no Bardo”

Joanna Macy

O texto a seguir foi publicado originalmente em inglês em Emergence Magazine.
Esta tradução, feita por Ormando MN e revisada por Bruna Buch, é publicada aqui com a autorização da revista. Veja o texto original clicando aqui.


Neste editoral de opinião, a eco-filósofa e erudita budista Joanna Macy nos introduz ao ‘bardo’ — o conceito budista-tibetano de um vão entre mundos onde a transição é possível. Conforme a pandemia revela um colapso contínuo e segura um espelho em frente aos nossos males coletivos, ela escreve, temos a oportunidade de entrar em um espaço de reimaginar.

Nós estamos em um espaço sem um mapa. Com a probabilidade de colapso econômico e catástrofe climática que se aproxima, parece que estamos em um terreno inconstante, onde velhos hábitos e velhos cenários não se aplicam mais. No budismo tibetano, tal espaço, ou vão entre os mundos conhecidos, é chamado de ‘bardo’. Ele é assustador. É também um lugar com potencial de transformação.

À medida que você entra no bardo, o Buda Akshobya está lá, de frente para você. O elemento dele é a Água. Ele está segurando um espelho, pois seu dom é a Sabedoria do Espelho, refletindo tudo exatamente como é. E o ensinamento do espelho de Akshobya é este: Não olhe para outra direção. Não desvie o seu olhar. Não evite ver. Esse ensinamento claramente pede uma atenção radical e uma aceitação total.

Nos últimos quarenta anos, venho cultivando uma forma de trabalho em grupo experiencial chamada Trabalho que Reconecta. É uma estrutura para mudança pessoal e social diante das crises esmagadoras — um modo de transformar o desespero e a apatia em ação colaborativa. Assim como a Sabedoria do Espelho de Akshobya, o Trabalho que Reconecta ajuda as pessoas a dizer a verdade sobre o que elas vêem e sentem que está acontecendo com nosso mundo. Ele também as ajuda a encontrar a motivação, as ferramentas e os recursos para participar da nossa auto-cura coletiva.

Quando nos reunimos para esse trabalho, no princípio discernimos três histórias ou versões da realidade que estão moldando nosso mundo, para que possamos vê-las com mais clareza e escolher qual delas queremos que fique para trás. A primeira narrativa que identificamos é a “Business as Usual”, com a qual nos referimos à economia do crescimento, ou ao capitalismo corporativo global. Ouvimos esta ordem de marcha¹ de praticamente todas as vozes do governo, das corporações de capital aberto, dos militares e da mídia controlada pelas corporações.

¹ Ordem de marcha: Em terminologia militar, as ordens de marcha são instruções de um oficial superior para que as tropas ajam ou se movam.

A segunda chama-se “O Grande Desmoronamento”: um colapso contínuo das estruturas vivas. Isso é o que acontece quando os sistemas ecológicos, biológicos e sociais são transformados em mercadoria através de uma sociedade do crescimento industrial ou um sistema “business as usual”. Eu gosto do termo “desmoronamento”, porque os sistemas não caem mortos, eles se desgastam, perdendo progressivamente sua coerência, integridade e memória.

A terceira história é a aventura central do nosso tempo: a transição para uma sociedade que sustenta a vida. A magnitude e o escopo dessa transição — que está bem encaminhada quando sabemos onde procurar — é comparável à revolução agrícola de uns dez mil anos atrás e à revolução industrial de alguns séculos atrás. Os pensadores sociais contemporâneos têm vários nomes para ela, tais como a revolução ecológica ou de sustentabilidade; no Trabalho que Reconecta a chamamos de a Grande Virada.

Simplificando, nosso objetivo com esse processo de nomeação e reconhecimento profundo do que está acontecendo com nosso mundo é sobreviver às duas primeiras histórias e continuar trazendo cada vez mais pessoas e recursos para a terceira história. Através desse trabalho, podemos optar por nos alinhar com o “business as usual”, com o desmoronamento dos sistemas vivos, ou com a criação de uma sociedade que sustenta a vida.

Nos últimos dois anos, alguns de nós envolvidos nesse trabalho reconheceram que, dado o ritmo do Grande Desmoronamento, estamos caminhando para o colapso econômico e, de fato, civilizacional. Nosso pensamento foi auxiliado pelo trabalho de Adaptação Profunda de Jem Bendell, que procura se preparar para — e viver com — o colapso da sociedade. Gostaria também de agradecer as contribuições anteriores, na Europa francófona, de Pablo Servigne e Raphael Stevens — cujo trabalho presciente se concentra no colapso e na transição, e só agora está sendo publicado em inglês.

Como a economia mundial atual não tem sido capaz de reduzir as emissões de gases de efeito estufa nem mesmo na menor fração de um grau, agora parece óbvio que não podemos evitar a catástrofe climática. Muitos de nós tínhamos suposto que a Grande Virada poderia evitar tal desintegração, mas agora reconhecemos a Grande Virada como um processo e um compromisso para nos ajudar a sobreviver ao colapso da economia do crescimento industrializado. A motivação e as habilidades que adquirimos ao nos engajarmos no Trabalho que Reconecta proporcionam a orientação, a solidariedade, e a confiança necessárias para atravessarmos esse inevitável colapso.

Existem muitas dimensões nesse trabalho que abordam as questões psicológicas e espirituais da época, e eu encontrei uma ressonância frutífera entre o pensamento budista e a ciência pós-moderna: muito do Trabalho que Reconecta foi influenciado pelos ensinamentos budistas. Agora penso na Grande Virada como algo parecido com bodicitta, a intenção de servir a todos os seres. Esse é o estado mental do bodisatva — o ser que, com sua grande compaixão, atrasa o próprio nirvana para lidar com o sofrimento do mundo. Lembro-me de meus professores tibetanos me dizendo que o bodicitta é como uma chama de fogo no coração, e muitas vezes eu posso sentir ela lá.

Agora pode parecer bastante claro quem está segurando o espelho de Akshobya — é a COVID-19. O coronavírus nos atingiu rapidamente. Não sabíamos nada sobre ele há pouco tempo atrás. Primeiro, ele nos obrigou a fazer uma pausa para que pudéssemos assimilar o que o espelho está refletindo. Temos estado tão ocupadas e distraídas em nossas diferentes versões da “corrida de ratos”² que não temos sido capazes de prestar atenção à nossa situação real. Tivemos que parar de correr para ver quem somos, o quê somos, e onde estamos.

² Corrida de ratos: Expressão que indica uma competição por sucesso, riqueza e poder.

A COVID-19 nos lembra que o apocalipse — em seu significado antigo — conota revelação e desvelamento. E o que ela desvelou? Uma pandemia tão contagiosa que revelou imediatamente nosso sistema de saúde fracassado, e a nossa total interdependência. A necessidade de priorizar a natureza coletiva do nosso bem-estar subiu drasticamente até a superfície, especialmente dentro do nosso país (Estados Unidos), que é o país mais hiper-individualizado do mundo. Como disse Malcolm X, “Quando mudamos o ‘eu’ para o ‘nós’, até mesmo a doença se transforma em bem-estar”. (“When we change the ‘I’ for the ‘We,’ even Illness becomes Wellness”)

Os padrões de contágio lançam luz sobre o que mais precisamos ver: as casas de repouso, onde os idosos são armazenados; a indústria de empacotamento de carne, tão perigosa para os trabalhadores amontoados, tão cruel para os animais, que custa tanto para o clima; as prisões, onde milhões estão trancados, agora se transformando em placas de Petri³ de contaminação; as falhas geológicas da desigualdade racial na nossa sociedade, agora desnudadas nos impactos desproporcionais da pandemia sobre as comunidades negra, parda e indígena. Sessenta por cento dos casos são de afro-americanos — graças às condições pré-existentes fomentadas pelas desigualdades na assistência médica e pelo racismo ambiental.

³ Placas de Petri: recipiente que os profissionais de laboratório utilizam para cultivar microorganismos.

Além disso, o assassinato de George Floyd não apenas revelou o racismo e a brutalidade de nossa cultura policial, mas despertou protestos inéditos, varrendo o país e exigindo o des-financiamento, e até mesmo a abolição, dos departamentos policiais e dos sindicatos.

Tanto globalmente como nos EUA, muitos de nós estamos descobrindo uma nova solidariedade na nossa determinação de ir além do racismo doente que herdamos. Nesta Insurreição, sou inspirada pela coragem, criatividade e perseverança daqueles que se envolvem em manifestações públicas, que estão influenciando muitos funcionários públicos a agirem — membros de conselhos municipais, agências, e até mesmo departamentos de polícia. Não é de se admirar que o bardo representa um lugar onde o desconhecido, mesmo o inconcebível, pode acontecer, e onde nós, que entramos, estamos profundamente mudados.

Quando ousamos enfrentar as cruéis realidades sociais e ecológicas a que estamos acostumados, nasce a coragem, e os poderes dentro de nós são liberados para reimaginar e, até mesmo, talvez um dia, reconstruir um mundo.

Não olhe para outra direção. Não desvie o seu olhar. Não evite ver.

— Joanna Macy, Julho de 2020

Imagem do Buda Akshobya: The Jina Buddha Akshobhya, Folio from a Pancharaksha (The Five Protective Charms). Courtesy of LACMA – Fonte: Emergence Magazine


Joanna Macy, PhD, é ativista ambiental, escritora, estudiosa do budismo, da Teoria Geral de Sistemas e uma das principais disseminadoras da Ecologia Profunda na atualidade.

Como professora raiz do Trabalho Que Reconecta, ela e uma rede de seres criaram uma estrutura teórica inovadora para a mudança pessoal e social, bem como uma poderosa metodologia prática para sua aplicação.

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