Espiral de Fim de Ano

Arte de Ashley Blanton

Espiral de Fim de Ano

por Lia Beltrão

Quando a pandemia começou, e todos nos sentimos com os pés fora do chão, eu fui atraída por um desafio: agora que o mundo tá desabando, e que mesmo a proximidade de outros seres humanos se tornou perigosa, é ainda possível usar a Espiral do Trabalho Que Reconecta? O passo a passo que Joanna Macy e seus amigos desenharam para lidar com a dor e o horror do mundo ainda faz sentido?

Esta não foi uma pergunta que eu fiz sabendo a resposta. Eu queria testar, colocar a ferramenta à prova. Eu estava em um barco que até então havia me transportado bem em meio a umas ondinhas médias, mas que agora se via diante de uma mega tempestade. Eu não quero me filiar ao barco e morrer agarrada nele. Eu quero atravessar a tempestade. Eu quero chegar do outro lado. E, sim, eu consegui ver a engrenagem da Espiral funcionando mesmo — e talvez ainda melhor — em meio àquele tempo de dor e incerteza.

E agora, dezembro de 2023, sinto que a atmosfera é de algum modo semelhante. Um cheiro de fim de mundo no ar. E não dá nem pra escolher por onde começar. Listar é injusto: o que significa mais sofrimento? O massacre aos palestinos e os corpos de milhares de crianças mortas a serem vistas no Instagram ou a guerra na Ucrânia, que segue mortal sem virar conteúdo para a rede? As centenas de botos cor-de-rosa mortos por conta da seca na Amazônia ou Lula fazendo acordos para leiloar o país para as petroleiras? O cinismo e a desumanidade de uma superstar ao fazer um concerto mortal em um mundo que desaba ou o próprio desabamento do mundo?

Eu sinto que estamos no mesmo lugar de antes. Um lugar que nos empurra para a honestidade radical — não fingir que “está tudo bem” mas perceber que ainda respiramos. Há crianças palestinas neste exato momento que ainda respiram, e botos que ainda nadam, e negociações que podem estar definindo neste exato momento que, se depender de nós, humanos, o ar ainda vai ser respirável em 30 anos, em 50, em 200 anos. 

Quando tudo parece completamente escuro e solitário, a primeira fase da Espiral, a Gratidão, se resume a acostumar o olhar e começar a ver nuances no breu. O pensador nigeriano Bayo Akomolafe descreve isso como o cultivo de um amor pelas rachaduras (Bruna Buch e eu falamos dele na oficina “Quando o mundo se torna sólido”, em novembro). Eu gosto da ideia de amar o escuro. Experimentar a prática de abrir os olhos no escuro da noite e se entregar à ausência de luz. Então, exatamente como quem abre os olhos no escuro e começa a ver o que não via antes, que tal fazer uma retrospectiva desse ano cultivando apreciaçãograça, fascínio por esse tempo que nos tocou estar vivo? Acostume os olhos através desta frase: Em 2023, eu me alegrei com…

Não economize. Faça sua lista ser grande. Eu, por exemplo, vi meu irmão se tornar pai. E minha mãe, avó. E agora, amo um serzinho que nem se dá conta de mim com uma naturalidade que me pegou desprevenida. E tá sendo lindo isso de ser tia. No escuro também há nascimento, e festa, e amor, e alegria. O que te alegrou?

Não só liste. Adentre seu corpo ao visitar esses lugares. Sinta o eletrizar da alegria, o expandir do amor. Se permitir desfrutar das sensações boas é das coisas mais olímpicas — e mais úteis (isso diz a ciência do trauma, não as vozes da minha cabeça) — a se fazer para re-estabelecermos o equilíbrio do nosso sistema nervoso. Visitar as alegrias, renovar os votos de se deixar apaixonar pela vida abre espaço para, agora sim, ficarmos com a dor sem pressa. Sem querer fugir, sem querer escapar. 

Então, como parte dessa Espiral de Fim de Ano, abra para si o território de mais uma frase: Em 2023, o que partiu meu coração foi… Por favor, não se apresse. Repita a frase algumas vezes e deixe que o que quer que tenha que vir, venha até você. Em forma de imagens, memórias, pensamentos ou mesmo uma sensação inominável de dor. Simplesmente sinta. Sinta o que talvez por muito tempo, e sem saber, você estava tentando não sentir. Ouça, como diz Thich Nhat Hahn, os sons da Terra chorando por dentro de você. Que sons são esses?

Você não precisa fazer nada além de estar presente. Sentir. Ouvir. Testemunhar. Honre a dor que você sente, porque ela é a manifestação da sua compaixão. É isso que Joanna e os budas e bodisatvas nos ensinam. Confie nisso. 

E depois, naturalmente, solte. Respire no espaço que se abre. Por um período, não faça nada. Ainda está escuro. Mas você pode Ver com Novos Olhos ao imaginar. Se deixe mergulhar em um lugar abaixo dos pensamentos, deixe sua mente se misturar na insondável teia de interdependência. Nós estávamos fazendo e sendo feitos o tempo inteiro pelo ir e vir das relações. Somos biosfera alimentando e comendo ela mesma. As quatro estações que passaram, se devoraram e vão se parir de novo. Como parte dessa teia, o que você imagina nascer? Quais futuros sonha? Conte as histórias dos desejos que habitam o seu coração. O que ele mais anseia? Lance esses sonhos para 2024 e além.  

Como última etapa dessa espiral de fim de ano, escolha, deliberadamente, acender a luz do seu presente. Seu coração se expandiu em gratidão; você deixou a dor ser sentida; e ousou imaginar. Agora ancore — ancore com ternura, mas precisão. Qual a sua oferenda para o mundo em 2024? Quando você parte deste lugar profundo, o que seu coração deseja é o que o mundo precisa. O que é isso então? Anote este desejo como quem anota um feitiço. Que aconteça!

Agora sim é possível seguir.


Lia Beltrão é jornalista e facilitadora de processos de transformação que unem mundo interno e ação coletiva. Oferece formações vivenciais baseadas em compaixão, consciência e engajamento em organizações e em atividades abertas. Tem se dedicado ao estudo e pesquisa sobre a contribuição de tradições contemplativas e também de abordagens terapêuticas que estudam o trauma para o campo do ativismo e da justiça social e ambiental, e está em formação em Experiência Somática. Colabora com a revista e editora Bodisatva e é uma das coordenadoras da comunidade de transformação o lugar.  É membro da Inochi, organização norte-americana voltada para paz e sustentabilidade fundada pelo mestre zen e ativista Kazuaki Tanahashi e tem apoiado as atividades da organização em projetos de proteção da Amazônia e seus povos.

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