Trauma e amor em um mundo ferido

Arte de Ashley Blanton

Trauma e amor em um mundo ferido

por Lia Beltrão

Minha conexão com Joanna Macy me abriu um mundo. Desde que me tornei facilitadora do método criado por ela, minha mente passou a girar em torno de temas como o antropoceno e a relação entre nossas emoções e a nossa forma de participar (ou não) da construção da sociedade que a gente deseja. Nos cursos e oficinas que facilito pude ver como a experiência de catástrofe, de fim de mundo, atravessa o sentir das pessoas. E com o desejo de oferecer o espaço mais seguro possível para esse sentir ser de fato uma liberação, decidi fazer uma formação em uma terapia informada pelo trauma. Nessa trajetória, as mais importantes referências para mim, incluindo a Joanna, são estadunidenses, europeus ou africanos. Sim, claro que há pensadores brasileiros que eu levo comigo, mas sendo bem honesta, são a minoria. 

Mas uma coisa curiosa aconteceu recentemente. Fui convidada para participar de um evento internacional sobre budismo e ecologia. Instituições de Espanha, Chile e Argentina, com várias conexões internacionais, organizaram esse evento online e resolveram me chamar. Eu era a única brasileira e sabia que boa parte dos participantes seriam de outros países da América Latina. A minha proposta era compartilhar essas descobertas que, na falta de uma descrição melhor, tenho chamado de “uma investigação sobre a intercessão entre trauma coletivo e transformação social” e claro, mais uma vez, as maiores referências não eram brasileiras, nem da América Latina. Não achei que era o caso de incluir na fala citações de autores brasileiros só para fins de representatividade. Não sou muito afeita a essas maquiagens. Mas queria sim, estar ancorada no meu território. E conectar as pessoas com ele. Porque minha experiência diz que quando estamos com alguém que conhece, e honra e está bem assentada na sua terra (ainda que bem longe dela!), nós tendemos a nos conectar com a nossa. 

E aí, de forma intuitiva, comecei a minha fala mais ou menos assim: 

“Eu estou falando com vocês desde minha cidade natal no Brasil,  João Pessoa, que está localizada no ponto mais ao leste — no extremo oriental — das Américas. O povo que vivia aqui nessa região se chama Potiguara, e há uma hora e meia de distância ao norte daqui existe um território indígena onde há uma comunidade de Potiguaras que bravamente resistem. É possível que minha bisavó fosse uma potiguara, mas os registros de sua vida se perderam no tempo, então o que eu tenho é, como quase todos os brasileiros, a certeza de que sou uma mistura de ancestrais desta terra, que a gente chama de Brasil, da África e da Europa. Dificilmente conseguimos rastrear, mas é essa complexa teia ancestral que nos atravessa, com seus presentes e dores. Daqui de onde estou, eu fico imaginando nossos ancestrais da América Latina conversando. Minha avó potiguara agora encontrando um quéchua, um mapuche, um chango que certamente faz parte da linhagem de vocês. Trocando o que sabem, sentadas em roda como quem encontra parentes. É nesse espírito de parentes se reencontrando que quero fazer esta conversa.”

Davi Kopenawa fala que os ecologistas são seres cuja cabeça foi tocada pela mão de Omama (lá no livro O espírito da floresta). Quando por pura intuição, decidi falar das avós antes de tudo, sem querer eu disse a mim mesma algo que já sentia. Que minhas avós e os espíritos antigos que habitam a minha terra também colocaram a mão na minha cabeça. Foram eles que guiaram para Joanna Macy, Donna Haraway, Isabelle Stengers, Peter Levine, Bessel Van Der Kolk, Bruno Latour, Bayo Akomolafe, para esse povo do estrangeiro cujas palavras, cujo coração, têm me levado de volta pra casa. 

O que você vai ler a partir de agora é o texto que guiou minha fala no encontro, sem muita edição, com traços de oralidade. A você, que está me lendo agora, convido que traga seus ancestrais para leitura. Talvez você sinta, como eu, foram eles que te trouxeram aqui. 

Perguntas como ponto de partida

O que eu vou fazer aqui é compartilhar uma trajetória de descoberta que está em curso. O tema da nossa conversa é trauma coletivo e transformação social e ambiental – a ideia é explorar nosso senso de agência coletivo, nosso desejo e capacidade para a transformação, para a construção de um mundo mais justo para todos os seres. Mas ir mais profundo, nos perguntando de que lugar interno estamos nos propondo a fazer essas transformações — e esse lugar interno tem a ver com trauma. Eu gostaria de explorar essa intersecção não de forma teórica e expositiva, mas por dentro da minha própria jornada pessoal, por dentro das perguntas que me fiz e sigo me fazendo. 

A primeira pergunta geradora, que tem me impulsionado até hoje não começou com a ideia de trauma, mas de contemplação, de mergulho no mundo interno. E acho que pode ser colocada assim:  

“Como uma tradição contemplativa como o budismo pode nos ajudar — de verdade! — a fazer as transformações que desejamos ver em nosso mundo?” 

E ela tem a ver com um contexto que desconfio que compartilho com algumas pessoas aqui presentes. 

Eu fui apresentada à visão budista da realidade quando tinha vinte anos, na mesma época em que, fazendo graduação em jornalismo, também me perguntava sobre qual seria o meu papel na sociedade. Os temas de desigualdade e a violência sustentada pela mídia foram centrais na minha formação — e não à toa. No ano em que me mudei para Recife para estudar na Universidade Federal de Pernambuco, a cidade ocupava o lugar de capital mais violenta do Brasil, com um número de quase 200 homicídios/100 mil habitantes entre 2002 e 2004. A média nacional no Brasil hoje é de 23 homicídios/100 mil habitantes, que ainda assim é muito alta — mas naquela época, em Recife, era quase 10 vezes mais. A pergunta sobre como a comunicação poderia ajudar a de algum modo diminuir esses números (entre tantas outras tristes estatísticas) e construir uma sociedade mais inclusiva, justa e, portanto, menos violenta, foi uma constante durante minha formação.

Foi nesse contexto que conheci o budismo, que me levou para quilômetros de profundidade nos meus questionamentos, e me trouxe tensões dialéticas muito férteis — mas não sem uma boa dose de aflição. Muitas dessas tensões demoraram muito para eu conseguir sequer nomear. E mesmo a forma como eu explico hoje para mim mesma e me relaciono com o trabalho que tenho feito, está em constante transformação. 

Explorando as tensões 

Para explorar uma dessas tensões, a gente pode tomar por exemplo o primeiro ensinamento do Buda, sobre sofrimento. O sofrimento existe, ele é experienciado pelos seres. Mas esse sofrimento não é aleatório. Ele tem causas. E as causas do sofrimento apontadas pelo Buda eram radicalmente diferentes do que eu estava habituada a ver quando estudava desigualdade e violência urbana. Eu estava convencida de que a causa do sofrimento das pessoas — o alto índice de homicídios em Recife por exemplo — era a falta de acesso aos bens que são de direito de todos os seres. Não. O buda apontou que a causa do sofrimento é nossa visão distorcida da realidade — uma visão dual, que gera todos os tipos de aflições.

Na visão budista, todo o nosso mundo — incluindo suas aberrações sociais, horrores, guerras — é resultado de aflições mentais, desta visão distorcida da realidade. A gente se move por medo e esperança achando que isso é vida, e continuamos a nadar num mar de insatisfatoriedade, que nos leva a criar e experimentar mais sofrimento. Isso parecia totalmente verdadeiro quando eu olhava para a minha própria vida, mas e o meu papel social? E a minha responsabilidade em construir uma sociedade mais justa?

Não só parecia haver um gap entre o individual e o coletivo como também muitos ensinamentos apontavam para a prática de “desistir”. Desistir de que? Desistir de consertar o samsara, da ideia de que vamos conseguir manipular as coisas a fim de chegar num estado final de equilíbrio pacífico. Por mais louvável que seja desejarmos uma sociedade com bem-estar para todos os seres, a impermanência é sempre parte da equação da vida. Nunca vamos alcançar este estado de equilíbrio pacífico. Por isso, o “desistir”. 

E não é só o buda que diz isso. O pensador nigeriano Bayo Akomolafe descreve essa busca por um equilíbrio pacífico como “o esforço de estabilizar o mundo, de determinar o que virá a seguir” (citação retirada deste podcast). Ele tem falado muito sobre pós-ativismo e defende que é exatamente esse desejo de estabilizar o mundo — que anima o nosso desejo de transformação social — que “nos levou ao Antropoceno, a ambientes tóxicos e venenosos, a exclusões de nossas vidas, a destruição de territórios”. Por isso a ideia de pós-ativismo: não podemos partir desta mesma base estreita para que as transformações e a cura do nosso mundo aconteçam.  

Explorando a citação

Então a minha pergunta que no início tinha a ver com como os ensinamentos budistas sobre as verdadeiras causas do sofrimento e a impermanência se relacionavam com a visão de transformação social, virou outra pergunta: “Como é possível ser tocado pelo sofrimento dos seres, que é real (e sobre isso concordam o Buda e as pessoas que trabalham pela transformação social) sem estar deludido pela ideia de permanência? Sem se ancorar em projeções irreais — porque as projeções são sempre permanentes e fixas — sobre o futuro? Sem querer, como diz Bayo Akomolafe, “estabilizar o mundo” arrogantemente, colonialmente, ainda que com maravilhosas intenções?” Então vamos sustentar esta pergunta. 

Eu comecei falando de Joanna Macy. É aqui que ela entra. E quero trazer apenas uma pequena citação dela:

“Não sentir a dor asfixia nossas respostas.”

O que asfixia e impede nossas respostas ao nosso mundo é nossa inabilidade de sentir o que está acontecendo com ele — com nossos irmãos humanos e não humanos, com a Terra. Essa afirmação aparentemente simples, e que na abordagem de Joanna é diretamente transformada em experiência, e não em teoria, tem muita coisa dentro. 

Gostaria de começar pela segunda parte. Ela nos convida a “sentir a dor”. E de que dor ela está falando? Ela está falando da dor pelo mundo, a dor do mundo sentida através de nós. Este é o tema na verdade gerador da metodologia criada por ela, chamada Trabalho Que Reconecta (TQR). No final da década de 1970 ela teve um grande insight de como a apatia diante dos problemas ambientais e sociais — que ela podia enxergar mesmo entre as pessoas mais queridas — não significava que as pessoas não se importavam, mas que elas não tinham habilidade para adentrar esse “território do sentir”. 

A partir daí, ela então começou a desenvolver uma série de práticas que criam um espaço coletivo de segurança e em grupo para, de certo modo, aprendermos juntos a sentir e expressar essa dor. Como facilitadora deste método eu pude testemunhar e me surpreender com o poder dessas práticas. Elas são tão simples quanto esta: colocar as pessoas em dupla, e enquanto uma ouve em silêncio, a outra completa a frase: “O que parte meu coração quando eu olho para o mundo é…”. A pessoa fala por apenas dois minutos. E depois ouve, em silêncio, sua parceira/parceiro completar a frase, por outros dois minutos. Só isso. E é incrivelmente transformador. Mas por que? 

Trauma

Eu comecei a querer entender mais sobre que tipo de terreno eu estava tocando quando fazia esse tipo de prática e quando convidava as pessoas a sentir e expressar a dor. Por isso comecei uma formação em uma terapia informada pelo trauma, que é a Experiência Somática, criada pelo Dr. Peter Levine. A apatia, que a Joanna tinha descrito lá no nascimento do TQR, é apontada por estudos científicos como um dos sintomas do trauma. 

E aí neste momento vou tentar explicar de forma breve (e claramente superficial) como o trauma funciona. É mais ou menos assim: quando as informações sensoriais do mundo externo são lidas pelo nosso cérebro — mais precisamente pelo tálamo — como uma situação de risco de vida, uma ameaça, existe uma orquestração do sistema de hormônios do estresse a do nosso sistema nervoso autônomo para gerar uma resposta em milésimos de segundos. A adrenalina sobre, nossa respiração e os batimentos cardíacos aumentam, nossos músculos enrijecem: tudo preparando o nosso corpo para luta ou fuga. Isso acontece fora do raio da consciência: quando a gente se dá conta do que está acontecendo, talvez já estejamos agindo. Naturalmente, passado o perigo, o sistema parassimpático põe um freio nessas reações e retorna o corpo para seu estado natural de relaxamento, mas engajado, presente.  

No entanto, para muitos de nós, diante de situações traumáticas, o corpo pode não conseguir se auto-regular sozinho depois do evento. A leitura do que é e do que não é ameaça fica prejudicada causando uma falta de sincronia entre o que está acontecendo fora e dentro. Há dois padrões principais aqui: pode acontecer uma hipoativação do sistema — que se manifesta como apatia, depressão, cansaço, falta de engajamento — ou uma hiperativação — onde nos encontramos em permanente estado de alerta, irritabilidade, prontos para luta e fuga quando não há necessidade. É essa desregulação que configura o trauma. 

Do individual ao coletivo 

As pesquisas sobre trauma começaram com foco em indivíduos que viveram eventos de risco de vida, especialmente de choque inescapável (os primeiros estudos sobre síndrome de estresse pós-traumático tinham como objeto ex-combatentes de guerra, por exemplo). Os pesquisadores tentavam entender como a fisiologia de um indivíduo tinha sido afetada por um evento que podia ser facilmente identificável em sua biografia — como a guerra, um acidente de carro ou um assalto, por exemplo.

Na medida que os estudos avançaram, eles passaram a incluir também o que foi chamado de trauma de desenvolvimento, ou trauma complexo. Aqui, não é um único evento que causa o trauma mas a exposição de um indivíduo a uma situação de falta de segurança contínua, como negligência, abusos, etc. O tema da segurança começa a ganhar espaço nas pesquisas, trazendo nuance para os estudos de trauma. 

Depois os estudos passaram a apontar que mesmo indivíduos que não haviam sido eles mesmos expostos a eventos traumáticos ou situações de constante falta de segurança poderiam manifestar sintomas de estresse pós-traumático, quando eles faziam parte de famílias ou comunidades cujas gerações anteriores haviam vivido aquelas situações. As pesquisas nesta área começaram a idenficar esses sintomas em filhos e netos de sobreviventes do Holocausto, mesmo que suas próprias biografias não mostrassem nenhum grande evento de falta de segurança. Isso foi chamado de trauma intergeracional e mostrou algo que vale a pena contemplar mais de perto: que o trauma não está restrito ao corpo, ou ao “eu” que o experiencia, que envolve algo que está além do corpo, além do indivíduo, além do “eu”. Outra forma de ler isso é que nossa noção de “eu” que temos é estreita para contemplar os fenômenos ligados à dor e sua cura. 

Trauma e antropoceno 

A evolução dessas categorias — indo do trauma individual, depois o trauma complexo e o trauma intergeracional, coletivo — é resultado de pesquisas sobre como o cérebro e o corpo humano, a nossa fisiologia, respondem a determinadas situações. Paralelamente a esses estudos, o termo “trauma ecológico” foi cunhado em 1992 por Theodore Roszak para se referir à dor psicológica e emocional que as pessoas experienciam ao testemunhar ou vivenciar os impactos adversos da degradação ambiental e da crise ecológica. Se por um tempo a teoria de Roszak foi criticada por alguns como pouco científica, na medida em que as pesquisas na área avançam ela vai se mostrando cada vez mais verdadeira. 

As descobertas sobre como o trauma coletivo funciona estão em plena evolução e as pesquisas científicas têm dialogado de forma muito rápida com os processos de cura, informando muitas abordagens terapêuticas, mas também a área da educação, da política e do ativismo. E no caso do ativismo, essas pesquisas sobre trauma têm influenciado as reflexões sobre como viver em um mundo em colapso, como viver no chamado antropoceno. 

O pensador nigeriano que citei antes — que é originalmente psicólogo — Bayo Akomolafe, levantou (neste podcast) as seguintes perguntas sobre trauma: 

“E se o trauma for mais do que um fenômeno individual? E se for ainda mais do que um fenômeno coletivo? E se estivermos sendo convidados a vivenciar o trauma da terra? O mundo além do humano ao nosso redor também é um arquivo de memória e sentimentos. E se estivermos participando de territórios de sentimentos? E se o trauma fizer parte da emergência material e de suas geometrias de cuidado e dano? E se estivermos lidando com algo que transcende circuitos racionais e retilíneos de ser e de tornar-se?”

Só nos curamos em grupo 

Vivenciar o trauma da terra, como Bayo fala, acessar esse arquivo de memória e sentimento que é a terra, é o convite que Joanna Macy faz — muito influenciada pelo budismo, mas também pela Ecologia Profunda e pela Teoria Geral de Sistemas. Joanna nos convida a testemunhar, a sustentar o espaço para o nosso próprio sofrimento e o dos outros — humanos, não humanos, o da terra — como sendo inseparáveis. Mas isso, e esta é uma parte crucial, precisa ser feito em grupo, em comunidade. 

Peter Levine, no livro Uma voz sem palavras (Summus Editorial) define trauma do seguinte modo:

“Trauma não é o que acontece conosco, mas o que guardamos dentro de nós na ausência de uma testemunha empática.” 

Ou seja, não é o evento apenas, mas o isolamento, a ideia de que estamos separados do mundo, a ausência de uma testemunha empática que gera um senso muito visceral de insegurança que estabelece e sustenta o trauma. E quando o Peter Levine fala de uma testemunha empática, ele se refere a alguém com o sistema nervoso regulado, resiliente. Alguém capaz de fazer uma leitura adequada do mundo, ou seja, cujos sensores de ameaça e resposta estejam em sincronia com o mundo. Alguém assim é capaz de testemunhar e ressoar com a dor do outro sem colapsar, sem afundar, sustentando o espaço para que a dor que precisa ser expressa possa encontrar o acolhimento de um sistema regulado. 

A isso, o neurocientista Stephen Porges deu o nome de corregulação. Porges pôs os relacionamentos sociais na vanguarda e no centro de nossa compreensão de trauma com a chamada Teoria Polivagal. Suas pesquisas apontam que a companhia de outros, o apoio social, é capaz de restabelecer o senso visceral de segurança que um corpo em trauma precisa para poder voltar à se regular, e responder de forma adequada ao que acontece — sem hipo ou hiperativação. 

No trauma, a nossa percepção de ameaça fica comprometida — é isso que está acontecendo em nosso mundo. A apatia que Joanna falou é sintoma dessa percepção distorcida. Portanto, para responder de forma adequada a uma ameaça global sem precedentes, precisamos aprender a estar na presença uns dos outros com qualidade, a sustentar lugares de dor e horror sem colapsar, e precisamos fazer isso junto. É a qualidade da nossa presença que vai abrir espaço para respondermos de forma adequada ao nosso mundo. 

Voltando à pergunta 

Então, aquela pergunta que eu me fazia sobre como agir no mundo de forma não-deludida pela visão de permanência, a visão de que vamos “estabilizar o mundo” foi se abrindo em direções bastante surpreendentes. O contrário de querer estabilizar o mundo é estar presente para o mundo como ele se apresenta, neste exato momento

Eu acho fascinante a maneira como os estudos sobre trauma têm destrinchado as nuances deste “estar presente” e apontado um mapa detalhado de como adentrar esse terreno. É como se a vasta inteligência do corpo humano estivesse sendo revelada — algo que acontece muito abaixo (ou muito acima?) do nível da cognição, do intelecto, do pensar. Para mim, a grande mensagem que eu escuto dessas pesquisas é: Nós temos todas as ferramentas evolutivas, aqui mesmo em nosso corpo, para acessar esse espaço não cognitivo de abertura para o que está acontecendo e ao fazer isso o vínculo, a conexão, a empatia, a compaixão e a prontidão para a ação inteligente emergem.  

Isso nos aproxima da segunda parte daquela citação de Joanna, a que fala das respostas. As respostas que Joanna fala não são nossas, são da teia da vida, do sistema. A visão aqui — e isso é bastante sistêmico — é que quando nos encontramos com os outros seres e com as situações deste mundo neste espaço de abertura nós podemos ser atravessados pelas respostas que querem emergir. De certo modo, nós somos usados para que a cura aconteça. Nosso papel é estar abertos, é se deixar afetar, tocar, comover, e ficar com o problema tempo suficiente para que ele revele suas soluções. A filósofa e zoóloga Donna Haraway faz uma defesa fascinante dessa atitude de “ficar com o problema” como forma de descobrirmos novas formas de viver e morrer neste mundo em colapso (neste livro maravilhoso).

As referências aqui são cientistas do trauma, filósofos, pensadores ocidentais, mas para os praticantes budistas presentes isso não deveria ser uma surpresa. Sustentar o testemunho é a prática que no budismo mahayana permite o despertar de bodichita – a inseparabilidade de compaixão e sabedoria. Já está lá faz tempo. Agora podemos celebrar que outros campos de conhecimento estão trazendo nuance para essa prática milenar.

Sim, podemos adotar o testemunhar a dor, fazer da corregulação uma prática cotidiana de transformação. Mas para isso, temos que entender que não é possível ter pressa. Os tempos são emergenciais, mas aqui, precisamos ficar com a dor o tempo que for necessário. Não saber quanto tempo vai durar. E não é apenas a Joanna Macy que fala isso mas todas as tradições espirituais: isso está descrito na noite escura da alma, na travessia do deserto, nos presentes da escuridão. É desistindo dos nossos ímpetos de ação e ficando com o que é que a ação compassiva, inteligente, emerge. Precisamos aprender a ficar — porque ficar é um ato de amor. E tudo que precisamos fazer é amar este mundo ferido. Ouví-lo profundamente. E voltando para nossas avós, potiguaras, quechuas, chango lembremos que elas eram certamente mestras em ouvir e amar este mundo, em não se ver separadas dele. Já temos isso dentro de nós, nós já sabemos.


Lia Beltrão é jornalista e facilitadora de processos de transformação que unem mundo interno e ação coletiva. Oferece formações vivenciais baseadas em compaixão, consciência e engajamento em organizações e em atividades abertas. Tem se dedicado ao estudo e pesquisa sobre a contribuição de tradições contemplativas e também de abordagens terapêuticas que estudam o trauma para o campo do ativismo e da justiça social e ambiental, e está em formação em Experiência Somática. Colabora com a revista e editora Bodisatva e é uma das coordenadoras da comunidade de transformação o lugar É membro da Inochi, organização norte-americana voltada para paz e sustentabilidade fundada pelo mestre zen e ativista Kazuaki Tanahashi e tem apoiado as atividades da organização em projetos de proteção da Amazônia e seus povos.

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